12 August 2017

transmimento de pensação

A primeira vez que falei com ela foi na noite anterior à viagem que faríamos juntos no dia seguinte. Ela me deu boa noite, muito gentil e me pareceu um pouco apreensiva. Ela questionou se eu estaria no horário marcado. Confirmei que sim. Ela insistiu, desconfiada: vai mesmo?

Antes de confirmar novamente, perguntei se mais alguém iria conosco e após desligar, fiquei pensativo, sobre como seria aquela professora aparentemente tão preocupada com a hora da partida.

Verdade que, nos últimos dias, muitas mudanças tinham acontecido. Por conta das chuvas e das estradas muito precárias, os deslocamentos estavam lentos e nem sempre, dava para cumprir os combinados nas chegadas e partidas.

Enquanto pensava sobre isso, a minha pequena sorria pra mãe e eu lamentava não poder presenciar cenas como aquela todos os dias. A vida como motorista terceirizado não é fácil. Pensando no compromisso de logo mais (com a professora tensa), depois de colocar minha filha pra escovar os dentes e dormir, também fechei as pestanas e pedi proteção para minha família e nos dois dias longe de casa.

A manhã chegou e eu corri para encontrar a professora que viajaria comigo. Cheguei dez minutos antes, mas não a encontrei no local combinado. O porteiro me disse que não havia ninguém me esperando e resolvi checar os pneus, enquanto a aguardava. Confesso que estava curioso. Sempre fico assim quando viajo pela primeira vez com um novo passageiro. A instituição funciona em espaços distintos e por isso, há necessidade das equipes fazerem rodízios e visitarem periodicamente cada local.

Nesse momento, o meu celular tocou e do outro lado, aquela voz com sotaque diferente do alagoano me perguntou:
- cadê você, Williams?
- olá professora, bom dia. Estou aqui fora.
- ah, que bom... venha para o portão. Estou saindo do carro.
- ok.
...
Enquanto ela fechava o carro dela, eu fiz a volta e a aguardei do lado de fora. Ela era baixinha, de cabelos curtos, olhar forte. Parecia uma menina, com aquele vestido colorido. Ela estava cheia de bagagens: uma bolsa, um casaco, água em uma das mãos e também arrastava uma mochila vermelha, com rodinhas.
- quer ajuda, professora?
- olá, Williams, claro que sim. Que bom que cumpriu o horário. Ontem eu fiz outra viagem e o motorista chegou uma hora e meia depois. Foi muito ruim.
- ah... não sou de fazer isso.
- que bom!
Após esse pequeno diálogo, adentramos o carro e a primeira impressão se desfez. Ela preferiu sentar ao meu lado e demonstrava confiança em mim. Ela não estava mais tensa. Estava coberta de razão por temer o meu atraso.
- então... chegaremos que horas em Arapiraca??
- ah, se o trânsito estiver tranquilo, em 2h, mais ou menos.
- ok, então vamos lá!
Ela ficou em silêncio e eu fiquei mais curioso. Ela era falante mas também muito calada. Geralmente as pessoas são ou falantes ou caladas. Essa professora era mesmo diferente. Fiquei pensando se deveria puxar assunto. De onde será que ela era? De Alagoas, com certeza não era. Talvez de Sergipe. De Pernambuco não. O sotaque dela era engraçado. Queria ouvi-la mais. Parece que ela adivinhava meus pensamentos:
- em seis anos morando em Maceió é mesmo uma vergonha. Somente ontem conheci Penedo. Que cidade linda!
- é bonita mesmo...
- fiquei encantada... Arapiraca não é lindinha assim. E Delmiro Gouveia também não é.
- é... são diferentes.
- na Bahia temos cidades lindas, também. Eu sou de lá.
- ah é?
- sim...
- olha, eu já visitei Salvador. É uma cidade bonita.
- é, é sim.
- eu preciso responder umas mensagens, daqui a pouco fico sem sinal.
- ok... fique à vontade.
Lá se foram mais uns 20 minutos sem ouvir a voz dela. Só começou a falar (sem parar) quando avistou as plantações de cana. Certamente o sinal da internet caiu. Sorte a minha.
- então... você gosta de ficar assim, indo e vindo?
- como assim?
- do seu trabalho.
- ah, gosto sim. É chato quando tá muito quente.
- é... chovendo assim, é bom... mas é perigoso. As estradas estão horríveis.
- sim, estão...
Parecia que ela queria puxar conversa comigo, mas eu sou muito tímido. Não conseguia perguntar nada.
- e você estuda?
- não... parei no segundo ano.
- do ensino médio?
- sim.
- mas como pode trabalhar numa universidade e não estudar?
- pois é... minha esposa é formada em Biologia. Trabalha como professora.
- ah, que legal.
- pois é... tentando concurso, mas tá difícil.
- é... temos um desgoverno no poder... é complicado esse momento.
Depois disso ela emudeceu, ajeitou o casaco e fechou os olhos.
Eu fiquei em silêncio, sem saber se poderia ligar o som, com vontade de ouvir música, mas sem querer atrapalhar o cochilo da professora. Fiquei pensando no que ela me disse. Da vontade que eu tinha de voltar a estudar, mas não sabia como...
- pode colocar música... eu não me incomodo.
- ok...
Eu fiquei na dúvida do que colocar. Apostei numa seleção de músicas que minha esposa organizou. Tinha de tudo.
- isso é música evangélica?
- não, é limão com mel, ao vivo.
Quis rir da pergunta, mas ela parecia desconhecer mesmo a banda de forró. Será que tipo de música ela gostava? Enquanto escolhia outro estilo, ela emudeceu de novo. Eu sabia que teria que aguardar mais longos momentos sem ouvir a voz daquela baiana tão espontânea.
- hum... eu vou ter que fazer umas ligações aqui... sinal, de novo!
Entendi o recado e baixei o volume.
O resto da viagem foi cheia de altos e baixos. Os altos eram todos quando ela falava. Fiquei viciado na professora mais divertida que encontrei pelo meu caminho. Deu até vontade de ser aluno dela. Só precisava saber como eu poderia estudar se todo dia eu viajava.
- chegamos?
- não, professora, mas falta pouco.
- olha, eu estive pensando... se você quiser voltar a estudar, vai ter que ser num curso a distância. Já pensou nisso?

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