3 October 2017

como é que ainda tem jornalista que nos diz "boa noite"?

No fim da tarde, após um mundo de assuntos finalizados, ela respirou fundo e pensou alto, como sempre faz pela casa inteirinha só dela (e só pra ela):
- chega de trabalhar, agora vou ver como é a tal da nova novela!
Lembrou que isso de falar sozinha está virando parte da rotina e é preocupante.
- bobagem, quem nunca?
Riu de si mesma, se ajeitou no sofá, esticou as pernas, agradeceu pelo clima de outono que insiste na primavera e ligou a televisão.
Estava passando a tal da nova novela de época, com cenas de machismo, de racismo explícito, e com aquela (velha) história repetitiva de pai que não aceita namoro de filha que aparece grávida e ordena que vá pro convento.
- Mais do mesmo, minha gente... custa inovar?
Enquanto pensava sobre isso, seus olhos pesaram e adormeceu antes do jornal das oito que tanto queria assistir. Acordou sobressaltada, achando que estava atrasada para um compromisso. Desistiu de levantar e continuou cochilando. O compromisso era ali mesmo, entre uma almofada e outra.
Vai ver a programação estava ruim e o sono venceu. Vai ver o cansaço era grande e o sono venceu. Vai ver era pra se desligar mesmo e esquecer essas coisas todas ruins que povoam as redes sociais, os nossos ouvidos e os nossos olhares indignados: um falso presidente que insiste que governa, um reitor que se suicidou, outro que exonerou, mais terrorista tocando o terror na cidade dos que casam à meia-noite e separam pela manhã, quando a ressaca denuncia.
É fato que dormir muitas vezes se confunde com fuga, para além do cansaço. Sonhar com um mundo melhor enquanto se dorme nem sempre funciona. A TV ligada lembra que a vida aqui do lado de fora continua um assombro e é isso que faz essa moça despertar e voltar renovada para a luta, ainda que seja para desabafar.
Escrever também é uma forma de resistir.

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